17 fevereiro 2004



Noite no bal? por M?rio S?rio Conti

14.02.2004 | no minimo | Para o filho menino, chuteira e bola de futebol. Para a menina, sapatilha e tutu. Leva-se um ao est?dio. A outra, ao bal?. De modo que, uma noite dessas, pegamos o metr? e fomos levar a Lina ao Op?ra Garnier para ver ?Giselle?.

Ela vai a uma escola de bal? (da prefeitura) perto de casa. O que mais gosta ? da roupinha cor-de-rosa de bailarina, do collant e do saiote de tule. Mas se diverte, e muito, dan?ando. Em casa, compenetrada, repete o pas chass?, o flamand, d? corridinhas e, com os bra?os levantados em forma de arco, gira em torno de si mesma na ponta dos p?s.

Nunca tinha ido a um bal?. Como o espet?culo era ?s sete e meia da noite, prometeu tentar dormir depois da escola. Cumpriu a promessa, botou um vestido de festa, o melhor casaco e, n?o houve como demov?-la, uma coroa dourada. A besteira foi minha, que lhe disse que o Op?ra, um teatro faustoso, antigamente era freq?entado por pr?ncipes e princesas.

Ligeira tens?o na hora da entrada: t?nhamos duas entradas e ?ramos tr?s. Pelo telefone, uma funcion?ria informara que a menina, mesmo com quatro anos, n?o poderia sentar no colo dos pais. Teria de ter uma poltrona s? para ela. O que ? bobagem, pois com ou sem cadeira ela sentaria no colo para poder enxergar o palco. Compramos dois ingressos (caros, na sexta fileira) e resolvemos arriscar. Deu certo.

***

O Op?ra Garnier, por si s?, vale a visita. Deve ser um dos teatros mais suntuosos do mundo, sen?o um dos mais bonitos. A impon?ncia napole?nica, os veludos vermelhos, os apliques dourados, as est?tuas neocl?ssicas, os lustres de cristal, as escadarias de m?rmore ? tudo ecoa as gl?rias do imp?rio franc?s e a satisfa??o da burguesia consigo mesma. E, apesar de todo o peso da constru??o, ela tem um toque genial de poesia: o teto, que ? sem d?vida a melhor coisa pintada por Marc Chagall.

?Giselle? ? a pe?a ideal para se ver no Op?ra. Foi nesse mesmo teatro que ela estreou, em 1841. E foi aqui que, em 1910, Dhiaghilev, Fokine e Nijinski lhe deram uma nova interpreta??o. Musicalmente, ?Giselle? n?o ? grande coisa. Seu compositor, Adolphe Charles Adam, n?o deixou mais nada digno de registro. J? a sua concep??o cenogr?fica e o seu enredo (do poeta Th?ophile Gautier, que se inspirou numa hist?ria de Heinrich Heine) representam o ?pice do romantismo ? na sua vertente contida e bem comportada: a et?rea. Tanto que a figura dominante ? o ?arabesque?.

Dito de outra forma, ?Giselle? ? uma pe?a tradicional, careta, que enche os olhos. E portanto adequada para pais que acham que filhas devem estudar bal?; e para uma filha sonhadora que vive imaginando reinos encantados, fadas e castelos.

J? instalados nas poltronas, com o programa na m?o, resumo o enredo e digo mais ou menos o que vai acontecer no palco. ?Mas os personagens n?o v?o falar??, pergunta Lina, com a objetividade de quem quer a defini??o do que ? bal?. Explico que a hist?ria ? contada por meio da dan?a, dos gestos e movimentos. Assim que o bal? come?a, ela me corrige: ?Os personagens tamb?m falam com a m?sica?.

***

No intervalo, circulamos pelo sagu?o e tomamos uma ta?a de champanhe. H? outras crian?as, todas mais velhas, e todas meninas. As mulheres est?o de vestido preto e j?ias. Os homens, de terno e gravata. Os jovens, despenteados. As jovens, de jeans.

O p?blico de bal?, assim como o de ?pera, entende da arte. (Meu av?, que entendia de ?pera, reclamava quando um cantor abria demais a boca, e xingava alto quando algu?m errava uma nota.) Eles vibram com os pas-de-deux, se entusiasmam com o andamento e fazem muxoxos quando algum bailarino hesita.

Um frisson percorreu o p?blico no segundo ato. Uma senhora atr?s de mim soltou um grito abafado, nervoso. Ao levantar Giselle (Agn?s Testu), o pr?ncipe Albert (Jos? Martinez), baixou demais o cotovelo direito; ela perdeu o equil?brio e n?o sei bem por que, miraculosamente, n?o caiu. A coisa toda foi r?pida. Equivaleria, em cinema, a um campo-e-contracampo um tanto abrupto ? movimento que o p?blico n?o percebe. Em ?Giselle?, todo o teatro percebeu.

Sim, o p?blico de bal? ? especial. E na R?ssia ? ainda mais especial. Vi o Bolshoi em Moscou e o Kirov em S?o Petersburgo. Em ambos, mas sobretudo em Moscou, havia eletricidade no ar. Porque, ao contr?rio de Paris, al?m de adorar bal?, o p?blico era popular. Percebia-se que as mulheres estavam com o ?nico vestido razo?vel, e os homens, com o ?nico terno ? e ambas as roupas eram velhas de d?cadas. Eles haviam economizado para ir ao bal?. E se comportavam com a alegria e a apreens?o de uma torcida de futebol antes de um cl?ssico. Nunca vi nada igual num teatro.

***

Dias depois fui ver o ?ltimo filme de Robert Altman, ?Companhia?, cujo tema ? tamb?m o bal?. A expectativa era a de que Altman fizesse com a dan?a o que fez com a m?sica caipira em ?Nashville?, com Hollywood em ?The player?, ou ao menos com o mundo da moda em ?Pr?t-a-porter?. Nem isso. ?Companhia? mostra Altman sem nenhuma inspira??o, num de seus piores momentos ? o que n?o ? pouco, pois quando ele erra, sai de baixo.

O filme se passa todo nos meandros do Jeoffrey Ballet of Chicago, com Malcom McDowell fazendo o diretor-prima-donna. Nenhuma das hist?rias paralelas leva a algo.

Nada contra o bal? contempor?neo e inventivo. Mas o da companhia de Chicago me pareceu circo disfar?ado. Ou ent?o um desafio infantil ?s regras do bal? cl?ssico. Um ?Fame? com ares de grande arte.


Eu dei uma olhadinha no site da Opera Nacional de Paris e vi que alguns cl?ssicos hist?ricos como "Otello" e "Dom Quixote" est?o em cartaz ainda....

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